terça-feira, 29 de agosto de 2017

Seleção

Existe dentro de mim um sentimento sutil e avassalador de deslumbramento com relação à vida. Não me refiro a "vida" como o limitado conjunto de experiências subjetivas que reconheço como minhas, mas ao fenômeno complexo que persiste na Terra há mais de um trio de bilhões de anos. Impressiona-me toda a diversidade que permeia os solos, as águas, a atmosfera; mas sobretudo me impressiona a arrebatadora fragilidade do que significa estar vivo. Paremos para pensar, ser conhecedor de linguagem terráquea, quantos fatores de perigo vagueiam ao seu redor neste momento? Não, não se prenda ao agora: quantas coisas poderiam ter causado sua morte até hoje? Eu, por exemplo, moro no quarto andar de um prédio que poderia cair a qualquer momento, tenho facas na minha casa que podem me provocar machucados, fico de cabeça para baixo em lugares altos, me desloco em veículos sobre rodas a velocidades muitas vezes mais altas que o corpo humano está preparado para atingir. Existem armas e existem pessoas que operam as armas e existem corpos humanos que param de funcionar com o mero impacto de um pedaço de metal disparado com a aceleração certa para causar uma hemorragia sem volta. O corpo humano quebra, o corpo humano sangra, o corpo humano não é nada diante de um único grande colapso.
Ainda assim, cada pessoa, e mais importante, cada ser vivo existente no planeta é resultado somente de sucessos da evolução.
Não é possível saber quais fraquezas de hoje permanecerão no cenário de novos mundos, nem calcular quantas histórias só viverão no registro fóssil de milhões de anos no futuro; mas
cada esponja do mar e cada beija-flor que estão vivos são a extremidade de uma enorme linha que os liga ao primeiro ser que surgiu, sobreviveu e se reproduziu neste planeta. Eis a grande beleza da evolução: ela transforma em força aquilo que é frágil, no momento em que mantém a existência dos seres quebráveis que, pelas mudanças, nunca se quebraram por completo.

Conto de Nadas

Era uma vez uma foto. Atirada pela janela ao lado de ingressos de shows, uma bermuda e um par de meias, ela atingiu a calçada, foi levada pelo vento, atropelada por um ônibus, tomou um banho de chuva e foi desbotando debaixo do sol.
Era uma vez uma carta. Guardada no bloco de notas, envelheceu como um vinho, foi relida algumas vezes pelo remetente, foi descendo, descendo, descendo, deixando o topo da tela para a lista de compras, até que o celular parou de funcionar.
Era uma vez um livro. Tinha sido um presente, mas, antes de ler, a dona emprestou e nunca recebeu de volta.
Era uma vez... se amaram, se separaram, se desconheceram.
Acredita-se que foram (qual é a palavra mesmo?) para sempre.

Oração

A vida é uma coleção de ilusões. Ela, por si só, é um delírio conceitual da consciência de seres bilateralmente simétricos com sistemas nervosos altamente centralizados. Nós, humanos de cabeças cheias de líquido e massa cinzenta, tendemos a supor que sejamos os únicos capazes de pensar a ponto de procurar um sentido para a vida. Eu acho perfeitamente possível que algum ser desconhecido tenha uma quantidade parecida de neurônios ociosos para isso, mas, pelo menos em humanos, o gasto de energia às vezes vai longe demais.
Quando me perguntam (não que me perguntem de verdade), prefiro responder que o sentido da vida é 5' 3', porque é o sentido da replicação do DNA. Simples, objetivo, ainda ressalta o fato de que eu gosto de biologia.
Não acredito que o universo tenha consciência, ou que tenha sido criado por um ser consciente, ou que sofra a interferência constante de uma autoridade suprema com qualquer tipo de moral ou juízo de valor ou vontade. Justamente por isso não me faz o menor sentido que a vida - como fenômeno coletivo ou individual - surja com uma finalidade. A ciência deu um grande passo livrando-se dessa ideia ao falar de transformação da vida. Seres vivos não evoluem para. Seres vivos evoluem porque. A causa é sempre anterior à consequência quando o fenômeno em si é inconsciente.
Talvez o incontrolável medo da morte leve os homens e mulheres a se agarrarem a mitos de criação e a amparos metafísicos que tornem a existência um pouco menos vazia. Se há um sentido, há algo além, se há algo além eu vou além. Se não há um sentido, cada pessoa viva existe por um ponto insignificante no tempo (que eu não sei mais se é uma linha ou um plano ou uma rede ou nada). Se não há sentido, somos uma série de acasos selecionados não-aleatoriamente (porque a natureza tem critérios lógicos desprovidos de vontade) cujos resultados são experiências sensoriais estonteantes, que usamos nos preocupando com o que está além do ponto, o que está além do tempo, o que está além da vida.
Eu não quero encontrar sentido, por mais que minha natureza humana me force a pensar sobre isso. Se é para procurar, que seja com a consciência de que essa busca é criativa e com a posição cética de que o universo não tem a menor obrigação de me conceder respostas fáceis.
A morte me apavora antes que eu caia no sono.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Mágoa discursiva

Ontem eu decidi que não ia mais ligar. Decidi que não vale a pena alimentar uma briga contra você da qual só eu participo, da qual você nem está ciente. Então hoje você falou meu nome, começou a conversa, expôs ideias que só não são suas porque você não se rende, foi como se quisesse participar da minha briga também. Isso me irrita. Me irrita que você afirme ter tantas certezas e que mesmo se preocupando tanto com a essência das coisas, acredite inocentemente que você a alcança porque os sentidos das forças da natureza te fizeram superior. Me irrita que nada que eu fale vai te fazer realmente parar pra ouvir e que eu não saiba a hora de encerrar a discussão mesmo que isso me leve a aumentar meu tom de voz e bater com o celular na mesa e rir tão nervosamente por ironia.  É impressionante como eu insisto em conversar mesmo depois de três vozes se juntarem para te dizer foda-se em unissono. Eu sempre ouvi. Eu não sei não ouvir. Eu ouvi no começo, quando você citou Schoppenhauer e o descrédito dos seus amigos te incomodava. Eu ouvi sobre a inexistência do amor, sobre a lista de chamadas da faculdade, sobre sua preocupação com a possibilidade da calvície. Não sei se você algum dia chegou ao nível de querer me conhecer. Se essa vontade já existiu, acabou no momento em que você conseguiu me beijar, e logo depois tirou suas mãos de mim tão rápido que deve ter levado um pedaço da minha pele. Eu estive disposta a te conhecer desde o começo, quando a sua inocência parecia leve em vez de teimosa, egoísta e cheia de autoafirmação nas coisas erradas.
Eu já percebi que seus beijos bêbados são sobre você e mais ninguém e que mesmo pedindo para segurar a minha mão você me via como coisa; porque eu vi você fazer com outras pessoas o que fez comigo. Você consegue o que quer e vai embora porque acha que é livre. Mas eu não me senti livre. Então toda hora que mencionam o seu nome e você não está, meus músculos se contraem, ansiosos por esboçar alguma reação; toda vez eu sinto necessidade de não ficar calada, talvez para que o mundo ouça aquilo que eu queria te dizer mas tenho plena consciência de que não te faz a menor diferença. Eu já disse que você me machucou me cortando sem explicações, você não pediu desculpas. E só continuou cativando outras meninas e indo embora da mesma forma que fez comigo e antes de mim. Por isso quando falam o seu nome, e mencionam algo que você falou com o coração que eu sei que existe, eu me pergunto por que eu fui tão indigna da sua amizade, da sua consideração, por que eu fui tão pouco especial. E me dói que nesses momentos, quando você é assunto, tantas coisas ruins apareçam, e que o tom das pessoas seja de irritação, de mágoa, de decepção. Porque é o meu tom também e eu odeio participar disso. Eu não quero mais ligar. Eu quero uma boa convivência e bons sentimentos, porque das duas pessoas que eu beijei você foi a segunda e eu me recuso a pensar nisso como um erro. Eu não me arrependo de ter gostado de você e eu não consigo deixar de ver todas as coisas boas que eu vi. A culpa da sua manipulação emocional e da sua teimosia filosófica não são minhas. São suas, totalmente suas. Mas eu sinto empatia e não te desejo o mal (apesar de a vingança ser bastante confortável por alguns segundos) porque no fundo eu sei que insistir nisso só te afunda e eu nao quero ver ninguém morrer afogado. Você é uma criança velha demais que logo não vai mais poder usar suas dores pra justificar seus erros. Você está perdendo tempo. Mas hesito em fazer qualquer coisa pois nao quero cair no erro de mil mulheres que veem os erros dos homens e acreditam que vão salvá-los. Eu não vou te salvar. Eu não posso fazer nada além de discordar de você.

É sexta-feira, amor

O bar quase cheio, os músicos afinando os violões, as cadeiras de madeira, o vapor d’água que condensa em círculo, entre a mesa e o copo de guaraná. Minha bolsa jogada na quina da mesa, meu batom ainda vermelho, meus braços ainda cruzados, meus olhos mirando a rua. Tua camisa jeans no cantinho do meu campo de visão e eu fingindo que não te vi, após ter virado uma estátua de areia, desmoronando com o susto da tua imagem. Teu anel de caveira, o cheiro do teu perfume. Eu exposta, líquida, derramada no chão. As eleições e os copos de cerveja. E o garçom lá do outro lado. Teus amigos, a legalização da maconha, tua mão no meu braço. A batata frita, os chicken ribs e o molho. All you need is love. O passado - o teu, o deles, o meu. O casal se beijando na mesa ao lado. A prova real. Minha risada alta escondendo um sorriso torto. O celular, o horário, a conta. Tua mão na minha cintura por menos de um segundo. As espadas de plástico no balcão. Um centímetro incômodo e (des)confortável entre nossos cotovelos. Teu braço sobre meu ombro, tua voz invadindo meu ouvido, meu coração parado, meu rosto congelado. Os degraus, as pessoas, eu segurando a saia para sentar. Minha mão brincando com o casaco de alguém, atravessando a mesa. Tua mão sobre a minha mão. A hora de ir embora. O carro preto na esquina, os beijos de despedida. O teu, sempre o último, burocrático. Não vai embora, deixa tua pele encostada na minha. E eu partindo no carro, sem o batom vermelho que deixei no copo de guaraná e na batata frita.

(sobre pessoas que eram outras pessoas em 2014)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Marcus

                                                                                  Para Marcus Vinicius Caldas

O mundo não é decorado com flores, Marcus. Sentada sobre a poltrona velha, enquanto chove lá fora, é a essa conclusão que chego. Veja bem, as flores estão lá embaixo, produzindo sementes, servindo de órgãos reprodutores para a totalidade da planta de que fazem parte, murchando. Não há motivo algum para achar que elas foram feitas para agradar aos presunçosos olhos humanos, que teimam em acreditar que todas as coisas bonitas existem para serem vistas. Não, Marcus, elas só existem.

Da mesma forma, o sorriso da pessoa que você ama se forma porque alguma descarga elétrica determinou que os músculos faciais deveriam se mover; e os olhos dela só servem para que ela enxergue. Não significa que ela olhe para você e, se olhar, não significa que seus olhos se encontrem. Eles só existem na mesma direção e sentidos opostos, sem ligação de almas incluída, se é que almas sequer existam.

As pontas dos meus dedos estão frias e não tenho nem mesmo o calor da caneca (onde antes havia chá de hortelã) para me livrar deste incômodo. Nunca pensei em comprar luvas e não sairia para comprá-las justamente agora, no dilúvio tão forte que desprende flores de suas respectivas plantas e raízes rasas de suas respectivas terras.  

Eu queria me desprender como elas, Marcus, mas me desprender do agora. Queria um pouco mais de eu em mim; entretanto, ao contrário das coisas externas que não sofrem efeitos do nosso julgamento em sua essência, o interior dos homens e mulheres é moldado pelo que se vê. Por dentro, temos essência de mundo.

E é por isso que nos deitamos, sem que tenhamos sono, fechamos os olhos e imaginamos (eu, pelo menos, não sei você) o passado que foi feliz, o dia em que os olhos se encontraram, o dia em que os sorrisos eram direcionados a nós, o dia em que almas existiram em seu mais elevado nível e o dia em que flores decoravam o mundo. Saudosamente, distanciados, tentando esconder o frio entre a cama e o edredom.

Minha essência de mundo captou imagens diversas, que me enfeitaram por dentro e talvez até mesmo por fora (dizem que quem ama fica mais bonito); tirou-me a noção de tempo; fez chover lá fora, apesar de a chuva não ser causada, mas percebida, por mim.

Queria retomar o controle, mas as flores não olham para mim se eu insistir em olhar para elas - não é porque eu amo que tenho que ser amada de volta, certo? E essa é a questão: quando foi que as flores deixaram de decorar o mundo? Elas só existem, Marcus, e te atingem sem que percebam e você as ama sozinho. Nem por isso deixa de amar, nem por isso elas deixam de ser belas. Não há erro nisso.

As gotas estão estáticas na janela de vidro e o céu parece limpo, apesar de escuro. Com os pés frios sobre o chão de cerâmica, é essa janela que abro, fazendo com que as gotas se movam e o resto de ar quente no quarto dê espaço ao vento congelante. As luzes da cidade não são suficientes para que eu consiga ver as flores aqui de cima. Mas, amanhã, conseguirei, e elas iluminarão meu dia. Não é sábio desviar o olhar da beleza só porque a admiração é unidirecional. Não é sábio amar pela recompensa.


O mundo, Marcus, é decorado com flores, sim.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Jogo de Sexta

                  Tecido?
                 .
               .
             .
          Azul    .     .     .    Quente
                                      .
                                 .
                            .
                       .
                 Frio     .     .     .     .     Solidão
                                                               .
                                                              .
                                                             .
                                                            .
                                                 Buraco
                                                      .
                                                      .
                                                  Vazio
                                                          .
                                                               .
                                                                    .
                                                                     . Preto
                                                                 .
                                                            .
                                                       .
                                               Luz
                                                  .
                                                        .
                                                             .
                                                           Estrela
                                                                       .
                                                                             .
                                                                                   .
                                                                                  Arte.
                                                                                              .
                                                                                                    .
                                                                                                   Vermelho
                                                                                                      .
                                                                                                  .
                                                                                              .
                                                                                     Paixão    
                                                                                    Coração                                                                        
                                                                                     Toque
                                                                                       Pele
                                                                                       Sua
                                                                                     Ureia
                                                                                    (Risos)
                                                                                     
                                                    - Gabriela Castro e Lara Norberto Renzeti

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Vem

Para Gabriela Correia
         “Viva!” eles dizem em volta, “viva longe dessas telas de TV e computador”. E é claro que eu gostaria de viver, mas já conheço a vida lá embaixo do prédio. As mesmas casas, a mesma rua, as mesmas obras e diferentes carros passando, às vezes desacelerando por um momento pra gritar “gostosa!” para mim ou para qualquer outra garota na calçada. Os caminhos de ônibus para a escola e para as casas das minhas amigas eu também sei de cor. Os engarrafamentos, as buzinas, as pessoas sentadas cada uma em seu canto, felizmente sem invadir o espaço de ninguém na maioria das vezes.
“Quando eu era jovem eu pegava o carro, ligava com um cortador de unhas e ia pra onde me desse na telha” dizem os tios, “hoje vocês ficam sentados esperando o tempo passar”. Se eu fizer isso, há duas possibilidades: ou eu morro na primeira esquina, ou eu morro quando chegar a casa. O mundo já é perigoso por si só, eu não posso adicionar riscos a ele.
“Sai um pouco desse quarto! Vai ficar sem ver a luz do dia?”, pergunta a família. Mas está chovendo e eu já conheço a sensação dos domingos. Amanhã tem aula e eu nem fiz meu dever de casa e não tenho a menor vontade de começar, mas eu conheço os sermões dos professores que só pedem um pouco de dedicação a mim e aos meus colegas. Só um pouco de dedicação deveria bastar.
“Vocês estão na época de se apaixonar, de sofrer por amor, de viver paixões despirocadas”, ousam dizer alguns adultos. No meu caso, só vivo de paixões frustradas, meios-beijos de dois anos atrás e nenhuma atração por conhecidos ou desconhecidos. Porque, na verdade, todas as pessoas que eu conheço parecem ter estado lá sempre. Não há grandes festas, nem alunos novos na natação, nem encontros e conversas promissoras em viagens de ônibus.
“Arrume algo pra fazer”, alguns pedem enquanto me olham com olhar de reprovação, “vai sentir alguma coisa, meu Deus”. E eu fico calada, mas no fundo me pergunto: como? Como se recomeça a sentir? Como eu experimento novas sensações se não posso nem escolher os lugares aonde vou sem causar grandes conflitos?  Como se conhecem novas emoções quando se tem horário para voltar para casa?
“Vem brincar comigo, você é jovem”, diz o mundo. “É”, ele repensa, “não vem, não; você é muito jovem”. E eu só olho de novo para a tela do computador.

domingo, 11 de maio de 2014

Parabéns, é uma menina

Oi. Eu sou uma menina, meu nome é Daniel e eu tenho 15 anos. Não foi erro de digitação: realmente não existe um “a” depois do “l” na minha certidão de nascimento, o que decorre do fato de que quando nasci, perceberam que eu tinha entre minhas pernas um órgão chamado pênis que até alguns anos atrás eu achei que servisse só para fazer xixi. Esse órgão só se formou porque, no núcleo da primeira célula que deu origem a todas as outras células do meu corpo, existia um cromossomo Y herdado de meu pai que se pareava com um X herdado da minha mãe. Dentro desse cromossomo, um trecho das combinações de timina, adenina, citosina e guanina fez com que eu nascesse com um pênis.

Quando minha mãe fez a quarta ultrassonografia, o médico anunciou “parabéns, é um menino” e minha mãe provavelmente chorou de felicidade. Não porque o fato de ter um filho menino fosse tão melhor assim do que ter uma filha menina, mas porque informações sobre bebês fazem as pessoas chorarem. Meu pai, que provavelmente estava segurando a mão dela também chorou de felicidade, pelos mesmos motivos, eu acho.
Fui um bebê bonitinho, com um pênis que servia sobretudo para molhar o banheiro de xixi na hora do banho e deixar minha avó achando graça. Mas que bonitinho, esse menino. Eu não sabia o que era ser um menino, eu não sabia que era uma menina.

Algum trecho do cromossomo Y que se repete por quase todas as células do meu corpo que me fez ter um pênis para fazer xixi em pé não me impediu de calçar os sapatos da minha mãe, de ir para a roda das meninas quando a professora nos dividia por sexo, de querer ir de maria-chiquinha para a aula e de não entender por que colocaram meu nome de Daniel, de me sentir mal por ser obrigada a usar o banheiro dos meninos. Eu sou uma menina. Por que todos insistiam no contrário?

Um dia me explicaram que meu pênis não servia só para fazer xixi. Eu descobri que as outras meninas não tinham um pênis. Fiquei muito confusa. Me explicaram que ter um pênis queria dizer que eu era um menino, e, portanto, deveria aceitar isso e parar de querer comprar vestidos.

Todos pareciam mais confusos que eu. Mas só pareciam. “Será que vai ser gay?” diziam alguns. Sugeriram até que meus pais me levassem a uns cinco tipos diferentes de igreja. Fui a alguns pediatras que não pareceram levar a situação muito a sério, diziam que ia passar, era coisa de criança. Nada resolveu. Continuei sendo uma menina.

Depois de alguns anos de pura desinformação, comecei a entender que talvez eu estivesse errada. Tentei fazer amizade com os meninos. Me bateram. Fiz coisas de menino, mas chorava quase todas as noites. Ganhei roupas de menino de presente. Passei a derramar sangue junto com as lágrimas. Chamavam-me de menino estranho, gay, viadinho, bicha, mulherzinha. A última palavra era a pior: eu era uma mulher afinal, qual o problema? Tentei me matar. Fiz amizade com as meninas mesmo. Entendi de uma vez por todas que eu era (e sou!) uma menina, simplesmente porque existe alguma coisa dentro de mim que me diz que é isso o que eu sou. Deve ser alguma essência feminina. Aceitei.

Meus pais me perguntaram se eu estava bem. Contei para os meus pais. Foi um desespero. Meu cromossomo Y não me ensinou a lidar com os conceitos limitados que foram impostos a eles durante os 40 anos inteiros de suas vidas. Meu pai segurou a mão da minha mãe e os dois choraram. Acho que descobrir o sexo dos filhos é sempre muito emocionante. Depois vieram os livros, as conversas, os gritos do meu pai. Depois veio uma compreensão embaçada. Mas aceitaram.

Contei para a família. Alguns tios pararam de falar com meus pais e comigo porque aparentemente o fato de eu ser uma menina iria destruir a família.

Deixei o cabelo crescer. Comprei maquiagem. Passei pela dor da depilação. Doei todas as minhas roupas de menino (menos as camisetas de bandas porque às vezes é difícil encontrar modelos femininos). Frequentei consultórios e mais consultórios para aprender a lidar com a puberdade e a produção de hormônios, fenômenos cujas características o cromossomo Y fez questão de me impor. E para entender melhor minha própria identidade. Descobri que me apaixono tanto por meninos quanto por meninas. Ainda não beijei ninguém.


Algumas pessoas me chamam só de Dani. Sempre tem alguém que usa a palavra traveco. Meus amigos (meninos e meninas) entendem que eu sou menina. Meus pais entendem que eu sou menina. O mundo ainda é um lugar muito ruim para uma menina viver (imagine uma que tem um cromossomo Y). Perguntam-me se eu não penso em fazer operação. Não me parece tão urgente, quem sabe um dia.

"Parabéns, é uma menina".

sábado, 18 de janeiro de 2014

Um deles

Um deles, sem o menor pudor
No meio-fio, no meio dos passantes
Urina virado para os carros
Um deles, com um boneco de plástico preso ao cabelo
Limpa os pés machucados
Numa poça de água suja
Um deles está pedindo dinheiro
E há quem reclame
“por que não vai trabalhar?”
Um deles bebeu demais
Adormeceu na esquina do bar
E não vai acordar tão cedo
Um deles roubou uma loja
Levou tudo o que podia
Inclusive um pote de manteiga
Um deles está preso
Porque matou um homem
E foi pego
Um deles estuprou uma mulher
E ameaçou repetir a dose com a irmã de um homem
Morreu empalado – e tiraram foto
Uma deles está grávida
E não tem dinheiro
Por isso expulsaram-na da lanchonete
Uma deles mora no morro
E trabalha limpando a casa (inclusive o vaso sanitário)
De famílias lá de baixo
Uma deles tem 13 anos
E foi estuprada
Mais de uma vez
Uma deles tem nove filhos sem pai
Mas deixa para a avó cuidar
Porque está lá fora dançando
Uma deles está no ônibus à noite
Fedendo a decomposição
Porque trabalha em um lixão
Uma deles queria ser médica
Mas morreu aos 16
Na fila do hospital
Uma deles não tinha emprego
Aceitou vender o corpo
Não tem carteira assinada
Um deles trabalha na Amazônia
E não sabe que o que faz
É desmatamento ilegal
Um deles tem 74 anos
Seu pai um dia foi à guerra
E nunca mais voltou
Um deles estuda em escola pública
E o teto está caindo
E não vai ter aula hoje
Um deles ganha um salário mínimo
E seu patrão diz que
“Bolsa Família sustenta vagabundo”
Uma deles terminou o ensino fundamental
Já perdeu a conta de quantos livros leu
Mas tem onze dentes faltando
Uma deles foi espancada pelo marido
E acredita sinceramente
Que ele bate porque ama
Uma deles vai todo dia à igreja
E dá seu dinheiro ao pastor
Porque Deus está olhando
Uma deles assiste à novela
Toda noite, no mesmo canal
E é sobre isso que conversa com as amigas
Um deles é filho de mãe solteira
Não sabe quem é o pai
Mas é melhor que nem saiba mesmo
Um deles foi educado pela violência
E vê nela o único caminho
Para conseguir o que quer
Um deles ainda tem 5 anos
Mas aos 15 terá um namorado
E será expulso de casa
Um deles é negro
E dá aula em escola particular
As pessoas ainda se surpreendem
Uma deles perdeu a virgindade
O vídeo está na internet
E ela, em outra cidade
Uma deles escuta os pais brigando
Toda noite – e repetiu de ano
Agora é o fracasso da família
Uma deles é gorda
Deseja arrancar seus excessos
E a cada noite faz um corte mais fundo
Uma deles ficou sozinha
Mesmo cercada de gente
Com pensamentos inflexíveis
Um deles tomou banho
E depois 30 comprimidos de Valium
Morreu sobre o vaso sanitário
Um deles foi alguém na vida
Só mais alguém
Infeliz
Um deles se apaixonou
Foi abandonado
E morreu de amor
Um deles era índio
Vivia em contato com a natureza
Foi expulso de casa por uma usina hidrelétrica
Uma deles era feliz
Tinha acabado a faculdade
Mas foi atropelada
Uma deles era amada
Mas sumiu
E até hoje é procurada
Uma deles, na escola
Não se encaixa
É motivo de piada
Uma deles só é feia
É igual a todas as outras
Só que feia
Um deles todo dia
Depois do almoço
Vomita de propósito
Um deles não quer mais levantar
Nem abrir a janela
Porque não vê motivo algum
Um deles se perdeu em contas
E impostos
E dívidas
Um deles teve tudo
Inclusive amor
Mas se esqueceu de preservar
Uma deles teve que esconder o nome
Na capa do próprio livro
Para atrair o público
Uma deles tinha um amigo
E quando o apresentou para o pai
Ele disse que não havia ninguém ali
Um deles
Um deles
Um desses humanos
Humanos que se esbarram
Pelos cantos, todo dia
Encaram-se na superfície
São os outros, não cada um
Mas cada um

É um deles

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Marcha Fúnebre

                Ronaldo não era muito inteligente aos 20 anos. Tinha virado motorista de rabecão porque foi o emprego que apareceu. O primeiro corpo que levou no carro era de um homem com pouco mais de cinquenta anos, barba por fazer, morto por ataque cardíaco. Foi difícil colocá-lo no compartimento de trás, já que ele era um pouco gordo; e mais difícil ainda teria sido conduzi-lo até o cemitério da forma convencional, sabendo que ninguém apareceria para vê-lo. Tocado pela solidão do morto, o motorista teve a ideia que mudaria sua vida: decidiu colocar um CD no rádio, deixá-lo tocando por todo o percurso e prestar sua própria homenagem ao desconhecido. A atitude tornou-se um hábito: Ronaldo passou a levar sempre aquele CD consigo. Quando tinha que dirigir, ligava o rádio e cantava junto.
Um dia, porém, parou para prestar atenção à letra de uma das canções e percebeu que era muito triste para ser a última música de alguém. Aposentou o CD e, com seu primeiro salário, foi a uma loja de música procurar um álbum adequado. Voltou para casa com três e escutou com atenção todas as letras para se certificar de que não haveria nada triste nelas. Sabendo ou não da história de vida e morte dos corpos, tocou os novos CDs por dois meses ou mais, até que um dia deixou de sentir que as velhas músicas preenchiam o vazio dos percursos. Bolou, então, sua estratégia: sempre que enjoasse de um CD, voltaria à loja e compraria mais.
Ronaldo costumava dizer entre amigos que “a primeira música difícil a gente nunca esquece”. Certa vez, enquanto levava um garoto magro de quinze anos, morto por overdose de heroína, tocou um CD novo. Estava um pouco relutante, porque na noite anterior, quando fizera sua avaliação rotineira da obra, não havia entendido uma palavra do significado da letra de uma das canções. O motorista se sentiu arrependido por não saber que tipo de emoção estava direcionando ao pobre menino e quando chegou a casa, escutou a tal da música seguidamente. Escreveu a letra num pedaço de papel que, depois de oito horas, estava cheio de anotações sobre possibilidades de significado.
Quando finalmente conseguiu interpretar o texto e aprovou-o como seguro, se prometeu nunca mais tocar nada que não entendesse. Comprou mais CDs e toda noite interpretava minuciosamente cada verso de pelo menos duas canções. Quando chegava ao trabalho, na manhã seguinte, e mandavam-no buscar mais um caixão, ele tentava descobrir tudo que podia sobre a pessoa que vivera no corpo que estava lá dentro. Quando conseguia, escolhia o que julgava ser a melhor opção de CD para deixar a alma feliz.
“Eu não sei pra onde vão as pessoas quando morrem”, dizia ele, “mas sei que a morte é uma parte importante da vida: é o final. E gosto de pensar que ajudei a fazer um final bonito”. Quando falava coisas assim, alguns amigos riam dele na mesa do bar, já um pouco bêbados. Ronaldo, então, pagava suas cervejas e ia para casa interpretar mais canções até cair no sono. Ele amava o que fazia, gostava das noites insones com ar de mistério, do som de violões, pianos, violinos, dos versos confusos e até dos dicionários que o ajudavam a entender palavras complicadas. Sem mesmo perceber, estava cometendo menos erros de português. Secretamente, escrevia poemas sem rima e sem métrica, e sonhava em entrar numa aula de piano. Mas tinha pouco tempo e pouco dinheiro, então era feliz tocando música para os mortos.
Sua mais tocante experiência de trabalho aconteceu quando, de surpresa, teve que carregar o corpo do melhor amigo. Ronaldo, tendo sido até convidado para o funeral, não hesitou em colocar no rádio um CD que ambos costumavam escutar juntos. Foi o caminho todo cantando, enquanto jurava escutar a voz do amigo. O que sentiu naquela viagem foi algo incompreensível. Quando chegou ao cemitério, em vez de lágrimas, teve de conter sorrisos. Fez até uma homenagem formal.
Com a positividade no auge, Ronaldo não tinha medo de morrer. Na verdade, não se importava em saber se havia algum lugar para ir quando a vida na Terra chegasse ao fim. Estava mais preocupado em viver da forma que gostava. Agora com sessenta anos, mesmo sem esposa ou filhos, não se arrependia de suas escolhas pessoais. Ele tinha quem o amasse: fizera muitos amigos durante sua vida, em lojas de música e nos shows aos quais, com muito esforço, conseguira ir. Lera muitos bons livros e até escrevera seus próprios.

Em sua última viagem, não houve música.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Ócio improdutivo


A internet caiu. Droga, terminei meu livro ontem! Se não tivesse lido até as 23h00min teria algo para fazer agora! Liguei a TV. Nada bom passando, todos os filmes no meio. Deixei-a ligada em um canal que apresentava um filme de qualidade duvidosa, mas com um nome legal, e ele se mostrou melhor do que o imaginado. Créditos. Deitei-me na poltrona, em uma tentativa de repor o sono que me faz tanta falta agora que estudo de manhã (mas que nem me passa pela cabeça em ebulição à noite). Nada além de um quase confortável momento de descanso. Desliguei a TV.
                11h27min. Tentei conectar mais uma vez o computador à internet. Sem acesso à rede. Após não sei quantos minutos de pura perda de tempo parada em frente ao roteador, desligando-o e ligando-o sucessivamente, decidi esquentar meu almoço. Trinta segundos no micro-ondas e a comida ainda estava gelada. Deixando-a mais trinta segundos girando ali dentro, abri a geladeira e coloquei um pouco de guaraná em um copo. Tirei o prato do micro-ondas e sentei-me no sofá da sala.
Liguei a televisão e tirei de um filme de ação clichê e cheio de efeitos especiais para colocar em um telejornal. Durante o almoço, sem prestar muita atenção à comida, fiquei me perguntando por que tantas pessoas reclamam desse jornal. Deve ser só muita desgraça junta. Só assisto mesmo porque tenho que me manter informada sobre o que acontece no mundo e por causa do ENEM. Não fosse por isso não me fariam falta tantas tragédias, estupros e barbaridades. Não gosto dessa realidade, com licença. Deixei a louça na mesa da sala e fui escovar os dentes.
Arrastei-me até meu quarto para pegar um livro de crônicas solicitado pela professora de literatura. Graças a Deus não é mais uma adaptação horrorosa de algum livro que eu tinha a intenção de ler. Joguei-me na poltrona da sala novamente e, abrindo o livro na minibiografia do autor, fiquei minimamente feliz por saber que ele era um cara de Copacabana nos anos 40.  Produto brasileiro, só pra variar um pouco. Li as três primeiras crônicas (muito boas por sinal), mas me distraí tentando contar quantas folhas o livro tinha só de olhar para ele fechado. Eram 56.
Abri a geladeira e procurei um chocolate. Não foi muito difícil de achar, já que ele estava embrulhado em um papel dourado enorme e nada discreto. Precisei de uma faca para tirar só um pedaço, que ainda veio quebrado. Guardei o resto na geladeira e comi minha parte sem muita animação. Não é disso que eu preciso! E, em meio ao ócio desnecessário, me rendi às frustrações emocionais de que, tão racionalmente, tento fugir a todo tempo. Corri para o quarto e deitei até que a crise passasse. Então lembrei: a internet caiu.


(Só postei isso aqui porque não tinha nada melhor escrito. É, tá chato, eu sei.)

sábado, 15 de dezembro de 2012

O menino da árvore

O mundo caminhava para seu fim (ao menos era o que acreditava a maioria); mas o menino sobre o qual devo falar estava sentado em uma árvore. Seus pés descalços estavam sujos e um pouco machucados por conta da escalada dos galhos, suas mãos seguravam um livro (de capa tão vermelha quanto o sangue) e seus olhos percorriam avidamente as letras impressas no papel quase branco. Seria muito pouco dizer que sua mente vagava pela fantasia, ou que seu coração batia junto ao dos personagens. Porque ler era muito mais que isso.

Como já mencionei, o mundo estava acabando. A cada dia, milhares de pessoas morriam atingidas por tiros, facadas ou palavras (que se você parar para pensar acabam sendo a mesma coisa). Era uma guerra onde só gritavam aqueles que não sentiam dor e quem se calava só teria a afirmar a desesperança. Mas não caia no erro de acreditar que aquele menino vivia na guerra: esse mundo estava logo abaixo dele.

E por isso ele lia. Nos livros havia as palavras que faltavam nas pessoas. Não só as palavras, mas os sonhos (ou o poder de acreditar neles). O menino lia, sonhava e pensava – seu mundo era cheio de vida. Às vezes, olhava para cima e ousava imaginar o que haveria em outros mundos. A cada vez que fazia isso, um universo se formava em sua alma. Seria mentira dizer que o mundo em apocalipse quase silencioso não o afetava – afinal, essa gente adora cortar árvores -, mas ele se mantinha ali, porque aquela árvore era tão forte quanto seu coração. Ele se preocupava com aquele mundo (até porque já vivera ali), mas sempre voltava para seu mundo de livros, onde tudo era melhor.

Apesar disso, ele não ficou ali para sempre. Um dia ele desceu da árvore. Eu seria muito idiota se dissesse que ele virou um adulto, porque ele só foi buscar uma caneta e um caderno. E com aqueles instrumentos, realizou grandes obras. Ele não conseguiu acabar com a guerra, mas fez algo tão importante quanto isso: deu um novo mundo a quem precisava de felicidade.

É, ele escreveu.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Domingo Sangrento


                As pegadas de Yuri, um menino de classe baixa de Petersburgo, marcavam a neve à medida que seus passos percorriam a calçada de uma rua estreita. Após uma longa caminhada ofegante, o menino de roupas manchadas chegou à sua casa, que estava de portas abertas para recebê-lo. Apoiou-se ao corrimão e subiu as escadas desgastadas para seu quarto. Em um dia normal, se incomodaria com o ruído assustador que os degraus faziam numa casa que era escura em qualquer parte do dia; mas, dessa vez, não percebeu som algum.

            Um fino feixe de luz passava pela fresta da janela fechada do quarto de Yuri, que a deixou fechada por mais que gostasse de ver a rua em frente coberta de neve como um quadro no único quarto bem iluminado da casa. Ao adentrá-lo, o menino fitou as paredes, encarou-as e esboçou um sorriso abobado e vazio.

“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção.”

            - Ah, que grande dia foi hoje! Eu e meus pais fomos até o castelo, – disse ele - com mais um monte de pessoas para entregar uma carta ao czar. Foi uma longa caminhada, mas todos estavam muito animados, porque iam receber mais tempo para descansar.

            Parando para respirar, o menino olhou para o chão, distraindo-se com uma aranha, mas voltou-se para a outra parede e continuou:

            - Nós fomos cantando muito felizes algumas músicas que o padre nos ensinou. E uma para o czar... Ele deve ter ficado satisfeito.

            Yuri calou-se mais uma vez porque não lembrava o que acontecera depois. Tentou reencontrar a memória em sua mente, mas logo desistiu, tirou o casaco e deitou-se na cama (que estava gelada devido à corrente de ar que vinha da fresta na janela). Cochilou durante um tempo e acordou com fome. Finalmente abriu a janela, sorriu novamente para uma das paredes e logo em seguida gargalhou, como se ela tivesse dito algo engraçado.

“Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância.”

            - Meu pai já deve voltar do trabalho com minha mãe. Espero que ela faça sopa hoje. Vou esperá-los.

            Não teve jantar naquela noite. Yuri também não percebeu a ausência dos pais por três dias. Ficou em seu quarto, falando sobre o que vivera, o que queria viver e sobre assuntos vazios sem sentido. Ele não percebeu o sangue que escorria de seu pé e muito menos o frio devastador que vinha da janela aberta. Quando encontraram seu corpo, uma semana depois, os vizinhos não conseguiram descobrir se a causa da morte foi o ferimento ou o ar gelado.

            A essa altura, a neve já cobrira as marcas de sangue que ele deixara na neve, mas ninguém duvidou do que havia acontecido. Afinal, todos os corpos baleados tinham sido retirados de perto do Palácio de Inverno muito recentemente. E a cena pavorosa da manifestação pacífica caindo ao chão, em meio a poças de sangue, ainda estava clara em muitas mentes.

“Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”

sábado, 27 de outubro de 2012

As cortinas azuis



As cortinas daquele quarto eram azuis claras, suaves como a mais leve nuvem no céu; e cobriam de forma mágica a porta da varanda, sem impedir que ela fosse vista. Pensar em tocar o tecido fino e transparente dava a impressão de pensar em tocar o Paraíso.

                Quem passava pela frente da casa notava primeiro as cortinas; depois o jardim, com suas orquídeas das mais diversas caindo pelas árvores em meio a roseiras. O branco não substancial sobre uma pintura provavelmente colorida na parede proporcionava alívio aos olhos e tranquilidade à mente. Então o sentimento de que anjos poderiam morar ali aumentava. Era quase impossível não parar o carro pelo menos uma vez na vida para observar a casa, após conhecê-la.

                Talvez anjos morassem mesmo lá. Uma menina de aparência tão bela e leve quanto a casa habitava o quarto das cortinas. Seu olhar era azul também, e transmitia a transparência e pureza de seu espírito. Ela era boa em fazer amigos e levava pouco tempo para eles virarem tão íntimos a ponto de conhecer a casa por dentro. Quando conheciam, começavam a lembrar anjos em algum traço de suas ações. Quando passavam a frequentar a casa, então, deixavam os outros felizes só por sorrirem.

                Aqueles sorrisos, aliás, eram obras de arte. Daquelas tão boas que fazem olhos de adultos brilharem como os de uma criança aprendendo a andar. E dessas obras de arte aquele pequeno mundo se alimentava, porque se precisa desse tipo de luz na vida. Todos que percebiam os sorrisos tinham a capacidade de iluminar uma cidade inteira, e a luz de só uma cidade teria o poder de preencher as trevas do mundo.

                É muito difícil acreditar nessas divagações abstratas sobre luz e felicidade, quando queremos acreditar que o mundo é frio e cruel. Vou contar uma coisa: é exatamente aí que entra a luz. Também é muito difícil para alguns admitir que parte do Paraíso se encontre na Terra.

E talvez seja por isso que é quase impossível que alguém sorria para um estranho, e mais ainda que um estranho tenha um sorriso retribuído. Se isso acontecesse, os corações seriam mais leves que nuvens, tenho certeza.