domingo, 11 de maio de 2014

Parabéns, é uma menina

Oi. Eu sou uma menina, meu nome é Daniel e eu tenho 15 anos. Não foi erro de digitação: realmente não existe um “a” depois do “l” na minha certidão de nascimento, o que decorre do fato de que quando nasci, perceberam que eu tinha entre minhas pernas um órgão chamado pênis que até alguns anos atrás eu achei que servisse só para fazer xixi. Esse órgão só se formou porque, no núcleo da primeira célula que deu origem a todas as outras células do meu corpo, existia um cromossomo Y herdado de meu pai que se pareava com um X herdado da minha mãe. Dentro desse cromossomo, um trecho das combinações de timina, adenina, citosina e guanina fez com que eu nascesse com um pênis.

Quando minha mãe fez a quarta ultrassonografia, o médico anunciou “parabéns, é um menino” e minha mãe provavelmente chorou de felicidade. Não porque o fato de ter um filho menino fosse tão melhor assim do que ter uma filha menina, mas porque informações sobre bebês fazem as pessoas chorarem. Meu pai, que provavelmente estava segurando a mão dela também chorou de felicidade, pelos mesmos motivos, eu acho.
Fui um bebê bonitinho, com um pênis que servia sobretudo para molhar o banheiro de xixi na hora do banho e deixar minha avó achando graça. Mas que bonitinho, esse menino. Eu não sabia o que era ser um menino, eu não sabia que era uma menina.

Algum trecho do cromossomo Y que se repete por quase todas as células do meu corpo que me fez ter um pênis para fazer xixi em pé não me impediu de calçar os sapatos da minha mãe, de ir para a roda das meninas quando a professora nos dividia por sexo, de querer ir de maria-chiquinha para a aula e de não entender por que colocaram meu nome de Daniel, de me sentir mal por ser obrigada a usar o banheiro dos meninos. Eu sou uma menina. Por que todos insistiam no contrário?

Um dia me explicaram que meu pênis não servia só para fazer xixi. Eu descobri que as outras meninas não tinham um pênis. Fiquei muito confusa. Me explicaram que ter um pênis queria dizer que eu era um menino, e, portanto, deveria aceitar isso e parar de querer comprar vestidos.

Todos pareciam mais confusos que eu. Mas só pareciam. “Será que vai ser gay?” diziam alguns. Sugeriram até que meus pais me levassem a uns cinco tipos diferentes de igreja. Fui a alguns pediatras que não pareceram levar a situação muito a sério, diziam que ia passar, era coisa de criança. Nada resolveu. Continuei sendo uma menina.

Depois de alguns anos de pura desinformação, comecei a entender que talvez eu estivesse errada. Tentei fazer amizade com os meninos. Me bateram. Fiz coisas de menino, mas chorava quase todas as noites. Ganhei roupas de menino de presente. Passei a derramar sangue junto com as lágrimas. Chamavam-me de menino estranho, gay, viadinho, bicha, mulherzinha. A última palavra era a pior: eu era uma mulher afinal, qual o problema? Tentei me matar. Fiz amizade com as meninas mesmo. Entendi de uma vez por todas que eu era (e sou!) uma menina, simplesmente porque existe alguma coisa dentro de mim que me diz que é isso o que eu sou. Deve ser alguma essência feminina. Aceitei.

Meus pais me perguntaram se eu estava bem. Contei para os meus pais. Foi um desespero. Meu cromossomo Y não me ensinou a lidar com os conceitos limitados que foram impostos a eles durante os 40 anos inteiros de suas vidas. Meu pai segurou a mão da minha mãe e os dois choraram. Acho que descobrir o sexo dos filhos é sempre muito emocionante. Depois vieram os livros, as conversas, os gritos do meu pai. Depois veio uma compreensão embaçada. Mas aceitaram.

Contei para a família. Alguns tios pararam de falar com meus pais e comigo porque aparentemente o fato de eu ser uma menina iria destruir a família.

Deixei o cabelo crescer. Comprei maquiagem. Passei pela dor da depilação. Doei todas as minhas roupas de menino (menos as camisetas de bandas porque às vezes é difícil encontrar modelos femininos). Frequentei consultórios e mais consultórios para aprender a lidar com a puberdade e a produção de hormônios, fenômenos cujas características o cromossomo Y fez questão de me impor. E para entender melhor minha própria identidade. Descobri que me apaixono tanto por meninos quanto por meninas. Ainda não beijei ninguém.


Algumas pessoas me chamam só de Dani. Sempre tem alguém que usa a palavra traveco. Meus amigos (meninos e meninas) entendem que eu sou menina. Meus pais entendem que eu sou menina. O mundo ainda é um lugar muito ruim para uma menina viver (imagine uma que tem um cromossomo Y). Perguntam-me se eu não penso em fazer operação. Não me parece tão urgente, quem sabe um dia.

"Parabéns, é uma menina".

sábado, 18 de janeiro de 2014

Um deles

Um deles, sem o menor pudor
No meio-fio, no meio dos passantes
Urina virado para os carros
Um deles, com um boneco de plástico preso ao cabelo
Limpa os pés machucados
Numa poça de água suja
Um deles está pedindo dinheiro
E há quem reclame
“por que não vai trabalhar?”
Um deles bebeu demais
Adormeceu na esquina do bar
E não vai acordar tão cedo
Um deles roubou uma loja
Levou tudo o que podia
Inclusive um pote de manteiga
Um deles está preso
Porque matou um homem
E foi pego
Um deles estuprou uma mulher
E ameaçou repetir a dose com a irmã de um homem
Morreu empalado – e tiraram foto
Uma deles está grávida
E não tem dinheiro
Por isso expulsaram-na da lanchonete
Uma deles mora no morro
E trabalha limpando a casa (inclusive o vaso sanitário)
De famílias lá de baixo
Uma deles tem 13 anos
E foi estuprada
Mais de uma vez
Uma deles tem nove filhos sem pai
Mas deixa para a avó cuidar
Porque está lá fora dançando
Uma deles está no ônibus à noite
Fedendo a decomposição
Porque trabalha em um lixão
Uma deles queria ser médica
Mas morreu aos 16
Na fila do hospital
Uma deles não tinha emprego
Aceitou vender o corpo
Não tem carteira assinada
Um deles trabalha na Amazônia
E não sabe que o que faz
É desmatamento ilegal
Um deles tem 74 anos
Seu pai um dia foi à guerra
E nunca mais voltou
Um deles estuda em escola pública
E o teto está caindo
E não vai ter aula hoje
Um deles ganha um salário mínimo
E seu patrão diz que
“Bolsa Família sustenta vagabundo”
Uma deles terminou o ensino fundamental
Já perdeu a conta de quantos livros leu
Mas tem onze dentes faltando
Uma deles foi espancada pelo marido
E acredita sinceramente
Que ele bate porque ama
Uma deles vai todo dia à igreja
E dá seu dinheiro ao pastor
Porque Deus está olhando
Uma deles assiste à novela
Toda noite, no mesmo canal
E é sobre isso que conversa com as amigas
Um deles é filho de mãe solteira
Não sabe quem é o pai
Mas é melhor que nem saiba mesmo
Um deles foi educado pela violência
E vê nela o único caminho
Para conseguir o que quer
Um deles ainda tem 5 anos
Mas aos 15 terá um namorado
E será expulso de casa
Um deles é negro
E dá aula em escola particular
As pessoas ainda se surpreendem
Uma deles perdeu a virgindade
O vídeo está na internet
E ela, em outra cidade
Uma deles escuta os pais brigando
Toda noite – e repetiu de ano
Agora é o fracasso da família
Uma deles é gorda
Deseja arrancar seus excessos
E a cada noite faz um corte mais fundo
Uma deles ficou sozinha
Mesmo cercada de gente
Com pensamentos inflexíveis
Um deles tomou banho
E depois 30 comprimidos de Valium
Morreu sobre o vaso sanitário
Um deles foi alguém na vida
Só mais alguém
Infeliz
Um deles se apaixonou
Foi abandonado
E morreu de amor
Um deles era índio
Vivia em contato com a natureza
Foi expulso de casa por uma usina hidrelétrica
Uma deles era feliz
Tinha acabado a faculdade
Mas foi atropelada
Uma deles era amada
Mas sumiu
E até hoje é procurada
Uma deles, na escola
Não se encaixa
É motivo de piada
Uma deles só é feia
É igual a todas as outras
Só que feia
Um deles todo dia
Depois do almoço
Vomita de propósito
Um deles não quer mais levantar
Nem abrir a janela
Porque não vê motivo algum
Um deles se perdeu em contas
E impostos
E dívidas
Um deles teve tudo
Inclusive amor
Mas se esqueceu de preservar
Uma deles teve que esconder o nome
Na capa do próprio livro
Para atrair o público
Uma deles tinha um amigo
E quando o apresentou para o pai
Ele disse que não havia ninguém ali
Um deles
Um deles
Um desses humanos
Humanos que se esbarram
Pelos cantos, todo dia
Encaram-se na superfície
São os outros, não cada um
Mas cada um

É um deles