O mundo caminhava para seu fim (ao menos era o que acreditava a maioria); mas o menino sobre o qual devo falar estava sentado em uma árvore. Seus pés descalços estavam sujos e um pouco machucados por conta da escalada dos galhos, suas mãos seguravam um livro (de capa tão vermelha quanto o sangue) e seus olhos percorriam avidamente as letras impressas no papel quase branco. Seria muito pouco dizer que sua mente vagava pela fantasia, ou que seu coração batia junto ao dos personagens. Porque ler era muito mais que isso.
Como já mencionei, o mundo estava acabando. A cada dia, milhares de pessoas morriam atingidas por tiros, facadas ou palavras (que se você parar para pensar acabam sendo a mesma coisa). Era uma guerra onde só gritavam aqueles que não sentiam dor e quem se calava só teria a afirmar a desesperança. Mas não caia no erro de acreditar que aquele menino vivia na guerra: esse mundo estava logo abaixo dele.
E por isso ele lia. Nos livros havia as palavras que faltavam nas pessoas. Não só as palavras, mas os sonhos (ou o poder de acreditar neles). O menino lia, sonhava e pensava – seu mundo era cheio de vida. Às vezes, olhava para cima e ousava imaginar o que haveria em outros mundos. A cada vez que fazia isso, um universo se formava em sua alma. Seria mentira dizer que o mundo em apocalipse quase silencioso não o afetava – afinal, essa gente adora cortar árvores -, mas ele se mantinha ali, porque aquela árvore era tão forte quanto seu coração. Ele se preocupava com aquele mundo (até porque já vivera ali), mas sempre voltava para seu mundo de livros, onde tudo era melhor.
Apesar disso, ele não ficou ali para sempre. Um dia ele desceu da árvore. Eu seria muito idiota se dissesse que ele virou um adulto, porque ele só foi buscar uma caneta e um caderno. E com aqueles instrumentos, realizou grandes obras. Ele não conseguiu acabar com a guerra, mas fez algo tão importante quanto isso: deu um novo mundo a quem precisava de felicidade.
É, ele escreveu.
sábado, 15 de dezembro de 2012
quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
Domingo Sangrento
As pegadas de Yuri, um menino de
classe baixa de Petersburgo, marcavam a neve à medida que seus passos
percorriam a calçada de uma rua estreita. Após uma longa caminhada ofegante, o
menino de roupas manchadas chegou à sua casa, que estava de portas abertas para
recebê-lo. Apoiou-se ao corrimão e subiu as escadas desgastadas para seu
quarto. Em um dia normal, se incomodaria com o ruído assustador que os degraus
faziam numa casa que era escura em qualquer parte do dia; mas, dessa vez, não
percebeu som algum.
Um fino feixe de luz passava pela fresta
da janela fechada do quarto de Yuri, que a deixou fechada por mais que gostasse
de ver a rua em frente coberta de neve como um quadro no único quarto bem
iluminado da casa. Ao adentrá-lo, o menino fitou as paredes, encarou-as e
esboçou um sorriso abobado e vazio.
“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de
São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos
filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar
justiça e proteção.”
- Ah, que grande dia foi hoje! Eu e
meus pais fomos até o castelo, – disse ele - com mais um monte de pessoas para entregar
uma carta ao czar. Foi uma longa caminhada, mas todos estavam muito animados,
porque iam receber mais tempo para descansar.
Parando para respirar, o menino
olhou para o chão, distraindo-se com uma aranha, mas voltou-se para a outra
parede e continuou:
- Nós fomos cantando muito felizes
algumas músicas que o padre nos ensinou. E uma para o czar... Ele deve ter
ficado satisfeito.
Yuri calou-se mais uma vez porque
não lembrava o que acontecera depois. Tentou reencontrar a memória em sua
mente, mas logo desistiu, tirou o casaco e deitou-se na cama (que estava gelada
devido à corrente de ar que vinha da fresta na janela). Cochilou durante um
tempo e acordou com fome. Finalmente abriu a janela, sorriu novamente para uma
das paredes e logo em seguida gargalhou, como se ela tivesse dito algo
engraçado.
“Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e
sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como
seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu
amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais
para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância.”
- Meu pai já deve voltar do trabalho
com minha mãe. Espero que ela faça sopa hoje. Vou esperá-los.
Não teve jantar naquela noite. Yuri
também não percebeu a ausência dos pais por três dias. Ficou em seu quarto,
falando sobre o que vivera, o que queria viver e sobre assuntos vazios sem
sentido. Ele não percebeu o sangue que escorria de seu pé e muito menos o frio
devastador que vinha da janela aberta. Quando encontraram seu corpo, uma semana
depois, os vizinhos não conseguiram descobrir se a causa da morte foi o
ferimento ou o ar gelado.
A essa altura, a neve já cobrira as
marcas de sangue que ele deixara na neve, mas ninguém duvidou do que havia
acontecido. Afinal, todos os corpos baleados tinham sido retirados de perto do Palácio
de Inverno muito recentemente. E a cena pavorosa da manifestação pacífica
caindo ao chão, em meio a poças de sangue, ainda estava clara em muitas mentes.
“Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei
arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas
resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a
morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”
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