segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Marcus

                                                                                  Para Marcus Vinicius Caldas

O mundo não é decorado com flores, Marcus. Sentada sobre a poltrona velha, enquanto chove lá fora, é a essa conclusão que chego. Veja bem, as flores estão lá embaixo, produzindo sementes, servindo de órgãos reprodutores para a totalidade da planta de que fazem parte, murchando. Não há motivo algum para achar que elas foram feitas para agradar aos presunçosos olhos humanos, que teimam em acreditar que todas as coisas bonitas existem para serem vistas. Não, Marcus, elas só existem.

Da mesma forma, o sorriso da pessoa que você ama se forma porque alguma descarga elétrica determinou que os músculos faciais deveriam se mover; e os olhos dela só servem para que ela enxergue. Não significa que ela olhe para você e, se olhar, não significa que seus olhos se encontrem. Eles só existem na mesma direção e sentidos opostos, sem ligação de almas incluída, se é que almas sequer existam.

As pontas dos meus dedos estão frias e não tenho nem mesmo o calor da caneca (onde antes havia chá de hortelã) para me livrar deste incômodo. Nunca pensei em comprar luvas e não sairia para comprá-las justamente agora, no dilúvio tão forte que desprende flores de suas respectivas plantas e raízes rasas de suas respectivas terras.  

Eu queria me desprender como elas, Marcus, mas me desprender do agora. Queria um pouco mais de eu em mim; entretanto, ao contrário das coisas externas que não sofrem efeitos do nosso julgamento em sua essência, o interior dos homens e mulheres é moldado pelo que se vê. Por dentro, temos essência de mundo.

E é por isso que nos deitamos, sem que tenhamos sono, fechamos os olhos e imaginamos (eu, pelo menos, não sei você) o passado que foi feliz, o dia em que os olhos se encontraram, o dia em que os sorrisos eram direcionados a nós, o dia em que almas existiram em seu mais elevado nível e o dia em que flores decoravam o mundo. Saudosamente, distanciados, tentando esconder o frio entre a cama e o edredom.

Minha essência de mundo captou imagens diversas, que me enfeitaram por dentro e talvez até mesmo por fora (dizem que quem ama fica mais bonito); tirou-me a noção de tempo; fez chover lá fora, apesar de a chuva não ser causada, mas percebida, por mim.

Queria retomar o controle, mas as flores não olham para mim se eu insistir em olhar para elas - não é porque eu amo que tenho que ser amada de volta, certo? E essa é a questão: quando foi que as flores deixaram de decorar o mundo? Elas só existem, Marcus, e te atingem sem que percebam e você as ama sozinho. Nem por isso deixa de amar, nem por isso elas deixam de ser belas. Não há erro nisso.

As gotas estão estáticas na janela de vidro e o céu parece limpo, apesar de escuro. Com os pés frios sobre o chão de cerâmica, é essa janela que abro, fazendo com que as gotas se movam e o resto de ar quente no quarto dê espaço ao vento congelante. As luzes da cidade não são suficientes para que eu consiga ver as flores aqui de cima. Mas, amanhã, conseguirei, e elas iluminarão meu dia. Não é sábio desviar o olhar da beleza só porque a admiração é unidirecional. Não é sábio amar pela recompensa.


O mundo, Marcus, é decorado com flores, sim.