sábado, 15 de dezembro de 2012

O menino da árvore

O mundo caminhava para seu fim (ao menos era o que acreditava a maioria); mas o menino sobre o qual devo falar estava sentado em uma árvore. Seus pés descalços estavam sujos e um pouco machucados por conta da escalada dos galhos, suas mãos seguravam um livro (de capa tão vermelha quanto o sangue) e seus olhos percorriam avidamente as letras impressas no papel quase branco. Seria muito pouco dizer que sua mente vagava pela fantasia, ou que seu coração batia junto ao dos personagens. Porque ler era muito mais que isso.

Como já mencionei, o mundo estava acabando. A cada dia, milhares de pessoas morriam atingidas por tiros, facadas ou palavras (que se você parar para pensar acabam sendo a mesma coisa). Era uma guerra onde só gritavam aqueles que não sentiam dor e quem se calava só teria a afirmar a desesperança. Mas não caia no erro de acreditar que aquele menino vivia na guerra: esse mundo estava logo abaixo dele.

E por isso ele lia. Nos livros havia as palavras que faltavam nas pessoas. Não só as palavras, mas os sonhos (ou o poder de acreditar neles). O menino lia, sonhava e pensava – seu mundo era cheio de vida. Às vezes, olhava para cima e ousava imaginar o que haveria em outros mundos. A cada vez que fazia isso, um universo se formava em sua alma. Seria mentira dizer que o mundo em apocalipse quase silencioso não o afetava – afinal, essa gente adora cortar árvores -, mas ele se mantinha ali, porque aquela árvore era tão forte quanto seu coração. Ele se preocupava com aquele mundo (até porque já vivera ali), mas sempre voltava para seu mundo de livros, onde tudo era melhor.

Apesar disso, ele não ficou ali para sempre. Um dia ele desceu da árvore. Eu seria muito idiota se dissesse que ele virou um adulto, porque ele só foi buscar uma caneta e um caderno. E com aqueles instrumentos, realizou grandes obras. Ele não conseguiu acabar com a guerra, mas fez algo tão importante quanto isso: deu um novo mundo a quem precisava de felicidade.

É, ele escreveu.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Domingo Sangrento


                As pegadas de Yuri, um menino de classe baixa de Petersburgo, marcavam a neve à medida que seus passos percorriam a calçada de uma rua estreita. Após uma longa caminhada ofegante, o menino de roupas manchadas chegou à sua casa, que estava de portas abertas para recebê-lo. Apoiou-se ao corrimão e subiu as escadas desgastadas para seu quarto. Em um dia normal, se incomodaria com o ruído assustador que os degraus faziam numa casa que era escura em qualquer parte do dia; mas, dessa vez, não percebeu som algum.

            Um fino feixe de luz passava pela fresta da janela fechada do quarto de Yuri, que a deixou fechada por mais que gostasse de ver a rua em frente coberta de neve como um quadro no único quarto bem iluminado da casa. Ao adentrá-lo, o menino fitou as paredes, encarou-as e esboçou um sorriso abobado e vazio.

“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção.”

            - Ah, que grande dia foi hoje! Eu e meus pais fomos até o castelo, – disse ele - com mais um monte de pessoas para entregar uma carta ao czar. Foi uma longa caminhada, mas todos estavam muito animados, porque iam receber mais tempo para descansar.

            Parando para respirar, o menino olhou para o chão, distraindo-se com uma aranha, mas voltou-se para a outra parede e continuou:

            - Nós fomos cantando muito felizes algumas músicas que o padre nos ensinou. E uma para o czar... Ele deve ter ficado satisfeito.

            Yuri calou-se mais uma vez porque não lembrava o que acontecera depois. Tentou reencontrar a memória em sua mente, mas logo desistiu, tirou o casaco e deitou-se na cama (que estava gelada devido à corrente de ar que vinha da fresta na janela). Cochilou durante um tempo e acordou com fome. Finalmente abriu a janela, sorriu novamente para uma das paredes e logo em seguida gargalhou, como se ela tivesse dito algo engraçado.

“Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância.”

            - Meu pai já deve voltar do trabalho com minha mãe. Espero que ela faça sopa hoje. Vou esperá-los.

            Não teve jantar naquela noite. Yuri também não percebeu a ausência dos pais por três dias. Ficou em seu quarto, falando sobre o que vivera, o que queria viver e sobre assuntos vazios sem sentido. Ele não percebeu o sangue que escorria de seu pé e muito menos o frio devastador que vinha da janela aberta. Quando encontraram seu corpo, uma semana depois, os vizinhos não conseguiram descobrir se a causa da morte foi o ferimento ou o ar gelado.

            A essa altura, a neve já cobrira as marcas de sangue que ele deixara na neve, mas ninguém duvidou do que havia acontecido. Afinal, todos os corpos baleados tinham sido retirados de perto do Palácio de Inverno muito recentemente. E a cena pavorosa da manifestação pacífica caindo ao chão, em meio a poças de sangue, ainda estava clara em muitas mentes.

“Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”

sábado, 27 de outubro de 2012

As cortinas azuis



As cortinas daquele quarto eram azuis claras, suaves como a mais leve nuvem no céu; e cobriam de forma mágica a porta da varanda, sem impedir que ela fosse vista. Pensar em tocar o tecido fino e transparente dava a impressão de pensar em tocar o Paraíso.

                Quem passava pela frente da casa notava primeiro as cortinas; depois o jardim, com suas orquídeas das mais diversas caindo pelas árvores em meio a roseiras. O branco não substancial sobre uma pintura provavelmente colorida na parede proporcionava alívio aos olhos e tranquilidade à mente. Então o sentimento de que anjos poderiam morar ali aumentava. Era quase impossível não parar o carro pelo menos uma vez na vida para observar a casa, após conhecê-la.

                Talvez anjos morassem mesmo lá. Uma menina de aparência tão bela e leve quanto a casa habitava o quarto das cortinas. Seu olhar era azul também, e transmitia a transparência e pureza de seu espírito. Ela era boa em fazer amigos e levava pouco tempo para eles virarem tão íntimos a ponto de conhecer a casa por dentro. Quando conheciam, começavam a lembrar anjos em algum traço de suas ações. Quando passavam a frequentar a casa, então, deixavam os outros felizes só por sorrirem.

                Aqueles sorrisos, aliás, eram obras de arte. Daquelas tão boas que fazem olhos de adultos brilharem como os de uma criança aprendendo a andar. E dessas obras de arte aquele pequeno mundo se alimentava, porque se precisa desse tipo de luz na vida. Todos que percebiam os sorrisos tinham a capacidade de iluminar uma cidade inteira, e a luz de só uma cidade teria o poder de preencher as trevas do mundo.

                É muito difícil acreditar nessas divagações abstratas sobre luz e felicidade, quando queremos acreditar que o mundo é frio e cruel. Vou contar uma coisa: é exatamente aí que entra a luz. Também é muito difícil para alguns admitir que parte do Paraíso se encontre na Terra.

E talvez seja por isso que é quase impossível que alguém sorria para um estranho, e mais ainda que um estranho tenha um sorriso retribuído. Se isso acontecesse, os corações seriam mais leves que nuvens, tenho certeza.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O mundo não é meu

Meu colchão geralmente fica colado na parede cinzenta, sob alguns lençóis amarelos e azuis, um pouco velhos.  Minha casa é diferente, tem até uma vista interessante para a rua. Observo os carros passarem e as pessoas conversarem sobre tudo, exibindo roupas belíssimas que desejo comprar um dia.

Há um rio aqui perto, não gosto de tomar banho nele porque odeio atrair olhares. As pessoas passam por minha casa e às vezes nem me notam, mas nunca gostam de mim quando notam. Algumas fazem questão de mostrar isso, olhando-me com reprovação ou desprezo, outras apenas olham-me fixamente, sem esboçar reação. Mas eu até aguento. Insuportável mesmo é quando elas olham com medo. Parece que acham que eu faria alguma maldade, quando tudo que mais quero é não ter que aguentar as maldades da vida. Sinto como se fosse culpa minha morar ali...

Meu pai sempre disse que eu tinha sorte por poder morar perto de um cruzamento movimentado - isso até ele morrer atropelado por um caminhão de refrigerante. Mas sorte é coisa que nunca tive. As pessoas gostam das crianças felizes e bonitas e não sou nenhum dos dois. Não sorrio, então não sorriem para mim. E não sorrio porque não sorriem para mim. Os guardas tentam me expulsar de casa, mal sabem eles que posso muito bem arrumar outra calçada e levar junto meu colchão e meus lençóis velhos. O problema é quando chove: é mais difícil achar lugares diferentes com marquise.

Não costumo ter raiva da vida, o que acontece é só uma vontade extrema de chorar. Chorar, gritar soluçar e ter alguém para me consolar e me deixar melhor – assim como as mães fazem após dizerem que não vão comprar tal brinquedo para seus filhos. Mas eu não tenho ninguém assim, então não choro. Prefiro me arriscar no mesmo cruzamento onde meu pai morreu porque em alguns dias eu consigo moedas e elas me deixam um pouco melhor, por algum tempo. Mas na verdade eu nunca estou exatamente bem.

Essas moedas, com a comida que representam, me dão uma ideia do que é estar feliz. Já ouvi alguns garotos de uniforme e homens de terno dizendo que dinheiro não traz felicidade... Mas a falta dele tira a felicidade. Esse tal de dinheiro marca as pessoas e é culpa dele se não gostam de mim. É culpa dele se passo a vida tentando me alimentar e me aquecer e me manter sem doenças (que mataram a minha mãe). É culpa dele se me machuco a cada vez que me olham. É culpa dele se não sei se prefiro lutar pela sobrevivência ou morrer logo. É tudo culpa dele!  E o mais angustiante é que este mundo aqui, onde eu vivo, pertence a ele.

Talvez eu não tenha casa mesmo...