Oi. Eu sou uma menina,
meu nome é Daniel e eu tenho 15 anos. Não foi erro de digitação: realmente não
existe um “a” depois do “l” na minha certidão de nascimento, o que decorre do
fato de que quando nasci, perceberam que eu tinha entre minhas pernas um órgão
chamado pênis que até alguns anos atrás eu achei que servisse só para fazer
xixi. Esse órgão só se formou porque, no núcleo da primeira célula que deu
origem a todas as outras células do meu corpo, existia um cromossomo Y herdado
de meu pai que se pareava com um X herdado da minha mãe. Dentro desse
cromossomo, um trecho das combinações de timina, adenina, citosina e guanina
fez com que eu nascesse com um pênis.
Quando minha mãe fez a
quarta ultrassonografia, o médico anunciou “parabéns, é um menino” e minha mãe
provavelmente chorou de felicidade. Não porque o fato de ter um filho menino
fosse tão melhor assim do que ter uma filha menina, mas porque informações
sobre bebês fazem as pessoas chorarem. Meu pai, que provavelmente estava
segurando a mão dela também chorou de felicidade, pelos mesmos motivos, eu
acho.
Fui um bebê bonitinho,
com um pênis que servia sobretudo para molhar o banheiro de xixi na hora do
banho e deixar minha avó achando graça. Mas que bonitinho, esse menino. Eu não
sabia o que era ser um menino, eu não sabia que era uma menina.
Algum trecho do
cromossomo Y que se repete por quase todas as células do meu corpo que me fez
ter um pênis para fazer xixi em pé não me impediu de calçar os sapatos da minha
mãe, de ir para a roda das meninas quando a professora nos dividia por sexo, de
querer ir de maria-chiquinha para a aula e de não entender por que colocaram
meu nome de Daniel, de me sentir mal por ser obrigada a usar o banheiro dos
meninos. Eu sou uma menina. Por que todos insistiam no contrário?
Um dia me explicaram
que meu pênis não servia só para fazer xixi. Eu descobri que as outras meninas
não tinham um pênis. Fiquei muito confusa. Me explicaram que ter um pênis
queria dizer que eu era um menino, e, portanto, deveria aceitar isso e parar de
querer comprar vestidos.
Todos pareciam mais
confusos que eu. Mas só pareciam. “Será que vai ser gay?” diziam alguns.
Sugeriram até que meus pais me levassem a uns cinco tipos diferentes de igreja.
Fui a alguns pediatras que não pareceram levar a situação muito a sério, diziam
que ia passar, era coisa de criança. Nada resolveu. Continuei sendo uma menina.
Depois de alguns anos
de pura desinformação, comecei a entender que talvez eu estivesse errada.
Tentei fazer amizade com os meninos. Me bateram. Fiz coisas de menino, mas
chorava quase todas as noites. Ganhei roupas de menino de presente. Passei a
derramar sangue junto com as lágrimas. Chamavam-me de menino estranho, gay,
viadinho, bicha, mulherzinha. A última palavra era a pior: eu era uma mulher
afinal, qual o problema? Tentei me matar. Fiz amizade com as meninas mesmo.
Entendi de uma vez por todas que eu era (e sou!) uma menina, simplesmente
porque existe alguma coisa dentro de mim que me diz que é isso o que eu sou.
Deve ser alguma essência feminina. Aceitei.
Meus pais me
perguntaram se eu estava bem. Contei para os meus pais. Foi um desespero. Meu
cromossomo Y não me ensinou a lidar com os conceitos limitados que foram
impostos a eles durante os 40 anos inteiros de suas vidas. Meu pai segurou a
mão da minha mãe e os dois choraram. Acho que descobrir o sexo dos filhos é
sempre muito emocionante. Depois vieram os livros, as conversas, os gritos do
meu pai. Depois veio uma compreensão embaçada. Mas aceitaram.
Contei para a família.
Alguns tios pararam de falar com meus pais e comigo porque aparentemente o fato
de eu ser uma menina iria destruir a família.
Deixei o cabelo
crescer. Comprei maquiagem. Passei pela dor da depilação. Doei todas as minhas
roupas de menino (menos as camisetas de bandas porque às vezes é difícil
encontrar modelos femininos). Frequentei consultórios e mais consultórios para
aprender a lidar com a puberdade e a produção de hormônios, fenômenos cujas
características o cromossomo Y fez questão de me impor. E para entender melhor
minha própria identidade. Descobri que me apaixono tanto por meninos quanto por
meninas. Ainda não beijei ninguém.
Algumas pessoas me
chamam só de Dani. Sempre tem alguém que usa a palavra traveco. Meus amigos
(meninos e meninas) entendem que eu sou menina. Meus pais entendem que eu sou
menina. O mundo ainda é um lugar muito ruim para uma menina viver (imagine uma
que tem um cromossomo Y). Perguntam-me se eu não penso em fazer operação. Não
me parece tão urgente, quem sabe um dia.
"Parabéns, é uma menina".
"Parabéns, é uma menina".