quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Marcha Fúnebre

                Ronaldo não era muito inteligente aos 20 anos. Tinha virado motorista de rabecão porque foi o emprego que apareceu. O primeiro corpo que levou no carro era de um homem com pouco mais de cinquenta anos, barba por fazer, morto por ataque cardíaco. Foi difícil colocá-lo no compartimento de trás, já que ele era um pouco gordo; e mais difícil ainda teria sido conduzi-lo até o cemitério da forma convencional, sabendo que ninguém apareceria para vê-lo. Tocado pela solidão do morto, o motorista teve a ideia que mudaria sua vida: decidiu colocar um CD no rádio, deixá-lo tocando por todo o percurso e prestar sua própria homenagem ao desconhecido. A atitude tornou-se um hábito: Ronaldo passou a levar sempre aquele CD consigo. Quando tinha que dirigir, ligava o rádio e cantava junto.
Um dia, porém, parou para prestar atenção à letra de uma das canções e percebeu que era muito triste para ser a última música de alguém. Aposentou o CD e, com seu primeiro salário, foi a uma loja de música procurar um álbum adequado. Voltou para casa com três e escutou com atenção todas as letras para se certificar de que não haveria nada triste nelas. Sabendo ou não da história de vida e morte dos corpos, tocou os novos CDs por dois meses ou mais, até que um dia deixou de sentir que as velhas músicas preenchiam o vazio dos percursos. Bolou, então, sua estratégia: sempre que enjoasse de um CD, voltaria à loja e compraria mais.
Ronaldo costumava dizer entre amigos que “a primeira música difícil a gente nunca esquece”. Certa vez, enquanto levava um garoto magro de quinze anos, morto por overdose de heroína, tocou um CD novo. Estava um pouco relutante, porque na noite anterior, quando fizera sua avaliação rotineira da obra, não havia entendido uma palavra do significado da letra de uma das canções. O motorista se sentiu arrependido por não saber que tipo de emoção estava direcionando ao pobre menino e quando chegou a casa, escutou a tal da música seguidamente. Escreveu a letra num pedaço de papel que, depois de oito horas, estava cheio de anotações sobre possibilidades de significado.
Quando finalmente conseguiu interpretar o texto e aprovou-o como seguro, se prometeu nunca mais tocar nada que não entendesse. Comprou mais CDs e toda noite interpretava minuciosamente cada verso de pelo menos duas canções. Quando chegava ao trabalho, na manhã seguinte, e mandavam-no buscar mais um caixão, ele tentava descobrir tudo que podia sobre a pessoa que vivera no corpo que estava lá dentro. Quando conseguia, escolhia o que julgava ser a melhor opção de CD para deixar a alma feliz.
“Eu não sei pra onde vão as pessoas quando morrem”, dizia ele, “mas sei que a morte é uma parte importante da vida: é o final. E gosto de pensar que ajudei a fazer um final bonito”. Quando falava coisas assim, alguns amigos riam dele na mesa do bar, já um pouco bêbados. Ronaldo, então, pagava suas cervejas e ia para casa interpretar mais canções até cair no sono. Ele amava o que fazia, gostava das noites insones com ar de mistério, do som de violões, pianos, violinos, dos versos confusos e até dos dicionários que o ajudavam a entender palavras complicadas. Sem mesmo perceber, estava cometendo menos erros de português. Secretamente, escrevia poemas sem rima e sem métrica, e sonhava em entrar numa aula de piano. Mas tinha pouco tempo e pouco dinheiro, então era feliz tocando música para os mortos.
Sua mais tocante experiência de trabalho aconteceu quando, de surpresa, teve que carregar o corpo do melhor amigo. Ronaldo, tendo sido até convidado para o funeral, não hesitou em colocar no rádio um CD que ambos costumavam escutar juntos. Foi o caminho todo cantando, enquanto jurava escutar a voz do amigo. O que sentiu naquela viagem foi algo incompreensível. Quando chegou ao cemitério, em vez de lágrimas, teve de conter sorrisos. Fez até uma homenagem formal.
Com a positividade no auge, Ronaldo não tinha medo de morrer. Na verdade, não se importava em saber se havia algum lugar para ir quando a vida na Terra chegasse ao fim. Estava mais preocupado em viver da forma que gostava. Agora com sessenta anos, mesmo sem esposa ou filhos, não se arrependia de suas escolhas pessoais. Ele tinha quem o amasse: fizera muitos amigos durante sua vida, em lojas de música e nos shows aos quais, com muito esforço, conseguira ir. Lera muitos bons livros e até escrevera seus próprios.

Em sua última viagem, não houve música.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Ócio improdutivo


A internet caiu. Droga, terminei meu livro ontem! Se não tivesse lido até as 23h00min teria algo para fazer agora! Liguei a TV. Nada bom passando, todos os filmes no meio. Deixei-a ligada em um canal que apresentava um filme de qualidade duvidosa, mas com um nome legal, e ele se mostrou melhor do que o imaginado. Créditos. Deitei-me na poltrona, em uma tentativa de repor o sono que me faz tanta falta agora que estudo de manhã (mas que nem me passa pela cabeça em ebulição à noite). Nada além de um quase confortável momento de descanso. Desliguei a TV.
                11h27min. Tentei conectar mais uma vez o computador à internet. Sem acesso à rede. Após não sei quantos minutos de pura perda de tempo parada em frente ao roteador, desligando-o e ligando-o sucessivamente, decidi esquentar meu almoço. Trinta segundos no micro-ondas e a comida ainda estava gelada. Deixando-a mais trinta segundos girando ali dentro, abri a geladeira e coloquei um pouco de guaraná em um copo. Tirei o prato do micro-ondas e sentei-me no sofá da sala.
Liguei a televisão e tirei de um filme de ação clichê e cheio de efeitos especiais para colocar em um telejornal. Durante o almoço, sem prestar muita atenção à comida, fiquei me perguntando por que tantas pessoas reclamam desse jornal. Deve ser só muita desgraça junta. Só assisto mesmo porque tenho que me manter informada sobre o que acontece no mundo e por causa do ENEM. Não fosse por isso não me fariam falta tantas tragédias, estupros e barbaridades. Não gosto dessa realidade, com licença. Deixei a louça na mesa da sala e fui escovar os dentes.
Arrastei-me até meu quarto para pegar um livro de crônicas solicitado pela professora de literatura. Graças a Deus não é mais uma adaptação horrorosa de algum livro que eu tinha a intenção de ler. Joguei-me na poltrona da sala novamente e, abrindo o livro na minibiografia do autor, fiquei minimamente feliz por saber que ele era um cara de Copacabana nos anos 40.  Produto brasileiro, só pra variar um pouco. Li as três primeiras crônicas (muito boas por sinal), mas me distraí tentando contar quantas folhas o livro tinha só de olhar para ele fechado. Eram 56.
Abri a geladeira e procurei um chocolate. Não foi muito difícil de achar, já que ele estava embrulhado em um papel dourado enorme e nada discreto. Precisei de uma faca para tirar só um pedaço, que ainda veio quebrado. Guardei o resto na geladeira e comi minha parte sem muita animação. Não é disso que eu preciso! E, em meio ao ócio desnecessário, me rendi às frustrações emocionais de que, tão racionalmente, tento fugir a todo tempo. Corri para o quarto e deitei até que a crise passasse. Então lembrei: a internet caiu.


(Só postei isso aqui porque não tinha nada melhor escrito. É, tá chato, eu sei.)